domingo, 18 de abril de 2021

Ressureição

    O desafio do mundo é o de crescer verdadeiramente, evoluindo de modo que cada ser se reconheça nos olhos uns dos outros. Nesse reconhecimento, novos pilares são erguidos pois já não é mais o Reino da Indiferença que se erguerá, mas o Reino do Amor.

    Muitos  pensam que o contrário do amor é o ódio. Mas, se pensarmos bem, ainda que nos pareça negativo e paradoxal, o ódio é ainda o que nos resta da capacidade de sentirmos algo por alguém. Algo que nos movimenta e aquece e pode, com o tempo, com doses homeopáticas e pacientes de acolhimento ser transmutado. Diferente do que ocorre com a indiferença. No ódio, mesmo com o olhar tomado pelo egoísmo de querermos o mundo tal qual nossa imperiosa vontade, ainda sim o vemos, sentimos, nos incomodamos com ele. Muitas vezes sentimos ódio justamente por perceber a ausência de amor seja em situações ou pessoas. O ódio é em geral ódio quando passamos a acreditar que não somos mais queridos, amados, desejados pelo todo que nos cerca ou quando percebemos que aquilo que até então amávamos nos passa a causar ojeriza. Nesse sentido, é muito verdadeiro o ditado que diz "ódio e amor andam sempre juntos". É fácil detectarmos os lugares ausentes de amor. Lá encontraremos um ódio feroz desejoso por ser transmutado.

    A indiferença é mais sutil. Sínica, ela se disfarça em ambos e nos engana a todos. As promessas insupríveis são seu maior regalo. Em geral, nossos corações percebem seu perigo, mas ela nos soa tão afável e inocente que acabamos por acreditar mais nela do que em nosso interior vermelho. Foi a indiferença quem ergueu o mundo no qual não suportamos mais viver. Ela é a capacidade absolutamente engenhosa de nosso ser mais inferior de nos cegar e aprisionar, convencendo-nos de que esse é o melhor caminho. É pela indiferença que confundimos: amor com clichê; caridade com esmola egóica; carinho com sexo; paixão com prisão; vida com conceitos; respiração com função sistêmica; deus com certezas; natureza com perigo; ser humano com dúvidas. E a lista não para por aí. Poderíamos passar a vida inteira aqui listando vários outros equívocos e ela só aumentaria.

    Uma das ações mais eficazes da indiferença é nos convencer, seja com embasamento teórico ou com fake news, de que a ignorância é o exercício do bem maior à medida que realiza o melhor sendo o pior possível. Assim são feitas incríveis descobertas, invenções e curas de todas as espécies que curiosamente dependem da vida de alguém para serem realizadas. Interessante observar como toda a ação tem uma justificativa infalível. Querem ver? O que nos diz um religioso que, mesmo passando fome e indignidade, dá a sua igreja o pouco que tem? Certamente ele dirá que está fazendo para deus sem perceber que são homens os cobradores de impostos. Do mesmo modo, qual é o sentido de em pleno século XXI ainda fazermos uso de vidas para "salvar" ou "manter" a nossa própria vida? 1, 2, 3... E vários de vocês terão milhares de justificativas plausíveis, bem estruturadas e dignas de serem ouvidas embora sejam, em sua maioria, humanamente equivocadas. E o equívoco está no fato de que independentemente do que se ache, pense ou diga uma vida não maior ou menor do que a outra. Uma vida, seja lá do que seja, não está a serviço de outra. É preciso que desapeguemos de uma vez por todas da escravidão.

    Escravidão é todo o desejo que nos move e nos condiciona a olhar a vida sempre dentro do mesmo formato. Daí que, a partir de sua lógica, rasa e medíocre, nada existe de fato. A vida, ela mesma, não faz sentido, por isso pode ser simplesmente ignorada. Aliás, o principal combustível da escravidão é a ignorância, seja ela letrada ou não. É assim que somos capazes de propagar, por exemplo, a ideia de que o outro - seja ele humano ou não - está subjugado apenas a nossa vontade. Vontade essa que passa longe da divina querência do inteiro. Nos terrenos da escravidão, não há inteireza, apenas a heresia da separatividade, da hierarquia e, porque não dizer, das salas de aula. A máxima é "não se olhem, não se toquem, não se ouçam!". Desse ensurdecimento paulatino e metódico nasce a violência e o abandono, filhos da ignorância, que propagam o julgamento e a condenação como os grandes pilares do mundo humano.

    Assim temos a trindade da escravidão: julgar - condenar - abandonar. É preciso que se diga, no entanto, que todo e qualquer ser dito humano só pode escravizar outro porque, na verdade, já é um escravo de sua própria inexistência. Somente um escravo em potencial, ou seja, alguém atolado na mais profunda ignorância de sua própria existência, pode realmente acreditar ser capaz de escravizar outro. Desse modo, é simples porém arduamente trabalhosa a caminhada para que, à medida que nos tornamos mais conscientes de nossa própria escravidão, a libertemo-la de nós. Pois, liberdade não é algo dado. É nascido de nós num parto originariamente natural e visceral.

    Mas não fiquemos revoltosos ou sabidos ou incomodados com que voz digo aqui. Essas são apenas evidências de uma jovem alma velha diante de um mundo que resiste em morrer. Esse mundo mofado, que já não suportamos mais, é paradoxalmente a única coisa que sabemos de nós e que talvez por isso sentimos tanta dificuldade de deixarmos ir. E por que? Porque dói pensar que parte de nós precisa se deixar morrer com ele. Mas não estou falando de pandemia ou apocalipse. Falo de uma mudança interna na alma da humanidade, que já pode ser vista a olhos nus nos olhos dos meninos e das meninas chegados à Terra.

    Olho diariamente nos olhos das crianças a pulsação de novos mundos possíveis, onde o amor é a alegria luminosa do corpo, às vezes em meio à condições que nos parecem impossíveis. Um corpo sem medo dos riscos, dos sonhos. Um corpo tão disponível para a vida que consegue fazer brotar arco-íris por onde passa pelo simples prazer de congregar sol e chuva, sem se preocupar em dizer qual deles é o mais bonito. Um mundo tão cheio de beleza, capaz de fazer de nós adultos, carregados de profundas lágrimas no peito, fazedores de rios, onde podem simplesmente brincar. 

    Nesse novo mundo possível não há discurso, pois é preciso ser o que se faz, o que se pensa, o que se sente e o que se diz. Só há poesia e música e dança e pintura por toda a parte. Lá, cada ser humano ocupa as praças, as ruas, os hospitais, os bancos, os supermercados, os cemitérios, anunciando: "Vocês estão livres. Obrigada por tudo o que nos ensinaram. Já não precisamos mais de vocês! Já não somos mais suas lógicas e razões! Nascemos! Somos outros! E a vida nos sonha para existir!". É assim que lá, nesse mundo menino, cada coração humano é nossa casa e dentro dela o abrigo é tão quentinho que mãe se torna palavra redundante. Lá, somos todos mães e filhos e pais. Nosso alimento é plantado, colhido e compartilhado por todas as almas, que agora compreendem que a vida não lhes pertence e que, por isso, é necessário com ela comungar.

    Do céu... no escuro, quando brincamos de pássaros dentro das nuvens... vemos lá embaixo o que realmente sentimos que viemos para ser... pontos de luz, em dourado e prateado, espalhados por todo o corpo da Terra. Lá de cima, as estrelas, que tudo escutam, choram de emoção ao verem seus retratos tão bonitos dispostos na memória de algum desses pontos... Ressureição!

    Quem tem olhos de entoar, que voe!

domingo, 5 de abril de 2020

Rotina e cotidiano em tempos de pandemia Repensando o lugar da Educação Infantil


 Bianka Barbosa


Conhecer o humano é, antes de tudo, situá-lo no universo, e não separá-lo dele. [...], todo conhecimento deve contextualizar seu objeto, para ser pertinente. Quem somos? é inseparável de Onde estamos?, De onde viemos?, Para onde vamos?.
Edgar Morin


1. Contexto só existe no plural

Para iniciarmos nossa reflexão, faz-se necessário evocar a pluralidade presente em todas as coisas que existem e/ou acontecem conosco, com o mundo e com a vida. Explico: partindo do pressuposto etimológico que nos afirma que a palavra “contexto” vem do verbo latino contexere, significando “entrelaçar, reunir tecendo”; e que o Dicionário Michaelis nos aponta outros tantos significados possíveis para tal palavra, tais como:
1.      Conjunto de circunstâncias interrelacionadas de cuja tessitura se depreende determinado fato ou situações; conjuntura;
2.      Conjunto de circunstâncias que envolvem um fato e são imprescindíveis para o entendimento deste;
3.      Encadeamento de ideias ou conjunto de circunstâncias que precedem ou se seguem a determinados elementos e pressupostos de um texto, aprofundando-se o significado quando de sua leitura e análise (entre outros),
Temos que o que chamamos de contexto é, genuinamente, plural e, por isso, pode nos apontar minimamente duas possibilidades: 1ª diz respeito à tessitura mais ampla, que reúne toda a coletividade e dá a ela seu estatuto de sociedade; 2ª diz respeito à peculiaridade vivida por cada pessoa humana em sua microestrutura social.
Nesse sentido, podemos afirmar que nosso atual contexto social está entrelaçado pelo advento da pandemia, intitulada corona vírus. Situação planetária que está deflagrando, de forma muito dolorosa, nossa falta de habilidade em nos tornarmos efetiva e amorosamente seres humanos. Sem dúvidas, nossas atitudes e escolhas diante da vida nos trouxeram a isso que chamamos de “isolamento social”, uma das únicas maneiras eficazes de conter a propagação da COVID-19. Tal contexto planetário está colocando todos os seres humanos diante da miséria ética, semeada em cada um de nós, e que ergueu impérios, proclamou a fome, instituiu a destruição e, entra século sai século, insiste na guerra e na violência como forma de dominação.
Agora em “isolamento social” tais bases estão estremecidas e o que surge como caminho é justamente o oposto: cooperação, solidariedade, dignificação da existência humana na Terra. Como podemos ver nos noticiários diariamente, tal caminho “novo” não está sendo fácil e desconfio que isso se dê justamente pela segunda significação da palavra “contexto” dita acima: a que diz respeito à peculiaridade vivida por cada pessoa humana.
Ora, para que o contexto planetário, no qual estamos inseridos de corpo inteiro, se reorganize, será preciso que os diferentes contextos individuais se conscientizem de seu poder de célula dentro do organismo vivo que é a Terra. Mas como exigir isso de pessoas-contextos que têm diariamente sua dignidade de existir extirpada em prol de outros contextos individuais que as exploram?
Sim. Para falar de contexto temos que utilizar o plural e nos deixar surpreender com o fato de que tal plural só o é por possuir RG, CPF, enderenço, história, cheiro, gestos próprios, sonhos, medos, esperanças e que, portanto, não pode ser simplesmente generalizado. Nesse sentido, abordarei o contexto que sou dentro desse contexto planetário que me reúne com tantos outros contextos.
Estou me sentindo num filme de ficção científica. Por vezes também tenho a sensação de estar dentro da obra de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira. Esperança e angústia são as melhores amigas dentro de meu coração agora. Será que também ficarei cega? Será conseguirei me manter sã tal qual a Mulher do médico? Não sei. Precisei fica longe de minha mãe e irmã. Estamos apenas eu e meu marido. Isso porque minha mãe tem 65 anos e, de acordo com a OMS, faz parte do grupo de risco da COVID-19. Meu amor por ela me fez ficar fisicamente longe. Fico em paz por saber que minha irmã está lá, cuidando e guardando nossa amada mãe. Nosso pai faleceu em novembro do ano passado. E o que antes estava sendo motivo de choro, hoje é a mais pura sensação de alívio, pois, se meu pai estivesse encarnado, não conseguiria cumprir o isolamento. Ele tinha 72 anos.
Além disso, sou professora. E todo esse contexto planetário tem-me feito refletir ainda mais e com mais intensidade a respeito do contexto que sou para minhas crianças e suas famílias. Antes da pandemia, confesso que desejava apenas realizar meu trabalho e cursar o mestrado da melhor forma possível, seguindo assim, ainda que sem perceber, a normose social de cada dia, responsável por escamotear a dimensão de mundo, de vida e de Terra que tais ações implicam. Hoje meu contexto interno e particular é de: saudade profunda de minhas meninas-raíz; alívio por saber que meu pai está fora dessa confusão toda; esperança de estar viva ao final de tudo isso e poder encontrar todas as pessoas que amo e compartilham comigo dessa travessia que é a vida. Hoje sou um contexto interno e particular que intensificou seu estado verbal de perdão com a mãe-Terra.

2. Contexto-escola e Contexto-família: diálogo não é cartilha

Como disse há pouco, sou professora, o que significa dizer que me preparei minimamente para exercer tal profissão. Sim. O magistério é um ofício e exige de quem o exerce conhecimento específico acerca da maneira como a aprendizagem acontece nos diferentes momentos do desenvolvimento humano, de modo a garantir que todos os estudantes tenham a possibilidade de realização plena de seus direitos de aprendizagem. Além disso, ser professor é ser pesquisador, não apenas de concepções e/ou paradigmas que possam lhe apontar caminhos possíveis, mas principalmente de sua própria prática enquanto criação sempre inaugural de novas possibilidades de aprendizagem.
Nesse sentido, cabe ao magistério, assim como a todo o corpo docente de uma escola, incluindo suas coordenações, orientações e direções, traduzir para toda comunidade escolar suas propostas e desafios com o objetivo de juntos serem de fato uma comunidade de aprendizagem. Dentro de uma comunidade de aprendizagem, contexto maior que engloba os diferentes contextos nela inseridos, o contexto-escola e o contexto-família precisam estabelecer um diálogo, mas isso não pode ser confundido com diretrizes e regras a serem seguidas de forma imposta tanto por uma quanto por outra. Há tanto no contexto-escola quanto no contexto-família especificidades que as limitam, isto é, dão contorno a seu corpo vivo e que, por isso, não podem ser violados. É assim que, mesmo neste contexto de pandemia, onde tanto adultos quanto crianças estão “isolados” em suas casas, escola e família precisam manter-se em discernimento. Ou seja, cada qual deve saber reconhecer seu papel dentro do contexto social do qual ambos fazem parte.
Filha da Idade Média, a escola da Modernidade optou por manter afastadas as famílias e insistiu, por séculos a fio, na pedagogia da segregação, cujo foco era a manutenção da lógica racionalista que, entre outras coisas, viu na interpretação errônea de separação entre corpo e mente o caminho possível para erguer o império do capitalismo. Entendidas desde simples ignorantes ou meros clientes, as famílias foram concebidas como algo à parte da escola, mas dificilmente como parte dela. Por outro lado, a história escolar das famílias deflagra experiências de diversas ordens: desde a esperança de ver seus filhos “se tornar alguém”; até a indiferença de pagar apenas mais uma prestadora de serviço dentre tantas outras. Ao optar pela cegueira, a escola encontrou então alguns caminhos: burocratizar a relação com as famílias através de festas, reuniões e chamadas de atenção quando diante da indisciplina dos estudantes. O caminho trilhado até então tinha uma aliado muito importante: a alienação, isto é, voltar-se para fora, para o externo que nos mascarou a gravidade do caminho que havíamos escolhidos.
Hoje, dentro do contexto planetário da pandemia, mais do que nunca a escola precisa repensar seu ser no mundo e no caminho percorrido até aqui. Pois, qual currículo será capaz de dignificar o enterro de um filho? Parece fatalista, mas o fato é que esta pandemia nos convoca enquanto profissionais da educação a pensarmos as condições humanas que, por séculos, formamos e perpetuamos para chegarmos até aqui. Foram anos de aulas de ciências para aprendermos a explorar os recursos naturais da Terra. Foram anos de aulas de português para corrigirmos nossos pais analfabetos e sentirmos vergonha deles. Foram anos de aulas de matemática para conceber vidas como mera estatística. Foram anos de aula de geografia para realmente acreditar que o Brasil se resume a Rio de Janeiro e São Paulo. Foram anos de aulas de história para elegermos sempre o colonizador. Continuaremos nesse caminho? Hoje, uma série de escolas está entupindo os estudantes com falsas verdades e não estão dando tempo nem para eles nem para seus professores conversarem a respeito de todo o medo, angústia e esperança que tal momento nos traz. Acaso enlouquecemos? Talvez tenhamos uma luz no final do túnel. Talvez com a Educação Infantil esteja acontecendo diferente. Talvez... talvez... talvez...
Só que não.

3. Educação Infantil: deixemos as crianças em paz!

Em um mundo erguido nos fundamentos da guerra, torna-se quase impossível falarmos de paz e quando tentamos ficamos confusos. Explico: muitos compreendem a paz como ócio máximo e, portanto, dispensável para a produção necessária à manutenção do que já não suportamos mais. Diante disso, corre o risco de muitos interpretarem a frase “Deixemos as crianças em paz!” como um apelo para a indiferença que conduziria às crianças a fazerem apenas “o que lhes der na telha” ou simplesmente não fazerem nada. Tal interpretação é justificável, pois fomos infelizmente formados para estarmos em guerra uns com os outros e, portanto, competindo, julgando, acusando, violando dentre outras qualidades nada afáveis. Mas não é a respeito desse mundo que tal frase se dirige.
Diante da pandemia, não teremos outro caminho se não esse: o de deixarmos as crianças em paz. E o que significa isso na prática, sabendo que partimos da posição de mundo que decidimos assumir, isto é, escola? Significa que teremos de deixar desmoronar todas as nossas formas de controle, seja em relação aos professores, aos pais e estudantes, para de fato entrarmos em diálogo com os seres humanos que, assim como nós, estão diante da eminência da morte. Significa honrar, quando falamos de Educação Infantil, o direito da criança à brincadeira e à interação principalmente consigo mesma e sua família. Significa aceitar de uma vez por todas que escola não é lugar de socialização, mas de promoção de encontros verdadeiros e que, portanto, não diz respeito efetivamente a paredes. Significa, por outro lado, reconhecer que não dá para simplesmente fazer uso de forma indiscriminada da tecnologia para institucionalizar a família, já tão tomada por suas próprias demandas. Significa, enquanto profissionais da Educação Infantil, assumir de uma vez por todas a brincadeira como o centro da relação com as crianças. Significa sermos capaz de romper com as telas tal qual fazemos quando nos trancamos nos quadrados de nossas salas de aula, também longe das ruas e do céu. Significa acolhermos o fato de que rotina é antes de tudo ritmo, coletivo e individual, a pulsar dentro do coração dos diferentes contextos. Significa sermos poeticamente ridículos e nos abrirmos para chorarmos juntos pelo fato de não podermos nos tocar. Significa termos a coragem de assumir nosso lugar de escola para então dizer às famílias o que lhes cabe. Significa nos permitirmos de uma vez por todas sermos e estarmos com as infâncias, das crianças e as nossas, únicas capazes de recriar de fato a vida... a nossa vida.
Fico pensando, diante de algumas falas, se a pandemia realmente não está sendo a oportunidade para que as famílias restituam seu lugar de família. Muitos dos pedidos de ajuda sinalizam uma dificuldade, não somente em função da “ausência” da escola nesse momento, mas principalmente com o fato de que as famílias já não se sabem mais famílias. A rotina, confundida com atividades e distrações para que a criança não atrapalhe o que o adulto precisa de fato realizar, deflagra a dificuldade já instaurada em algumas famílias muito antes da pandemia. Se a escola não se preocupou com isso antes, não será agora que dará jeito. Daí que é tão necessária a mudança de nossa conduta em relação a elas. Mães não são professoras, isto é, não possuem conhecimentos práticos e técnicos para lidar com as crianças. Sem contar que, de fato, ocupam e realizam um outro lugar, o de mães, já bastante cobrado socialmente. A escola não pode realmente acreditar que suas orientações e sugestões as colocarão nesse lugar, assim como não pode fazer com que acreditem nisso por um único motivo: isso é uma mentira. Sem contar que é jogar no lixo grandes conquistas dentro da área, frutos de muitas lutas e embates. Mães são mães. E isso é o maravilhoso que lhes cabe. A nós, professores, fica o desafio de finalmente nos encontrarmos com elas, olharmos seus olhos, ouvirmos suas histórias e podermos falar... sobre nós, professores, e nossas histórias, sobre o porque de nossas escolhas e sonhos e a partir daí fortalecermos os laços agora mais conscientes talvez de que a distância estava no antes... bem antes de toda essa loucura.


Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2011.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.



sábado, 28 de março de 2020


Vamos nos encontrar e dizer que tudo isso aí:
Comércio
Política
Verdades e mentiras
Não passam de ilusões.
De distrações para que não sejamos o que devemos ser.

Vamos nos encontrar e dizer ao mundo que:
Criar é a única coisa verdadeira.
Que nada está pronto.
Os mares ainda não foram paridos.
Assim como os olhos,
os ouvidos,
o corpo de quem é.

Vamos nos encontrar e dizer ao mundo que é possível:
Acordar com desejo de ser,
Ser sem precisar ter,
Ter pelo prazer de comungar.

A gestação nos aguarda para terra.
É de infância o corpo do universo.



terça-feira, 12 de junho de 2018

Nascer... Viva!!!!

Tem coisa mais linda que nascer?
Quando eu nasci, estava no meio de um pique com as nuvens, os ventos, os planetas... Foi então que a voz entoou:
- Vai lá e brinque de ser quem vc é...
Mole mole... Fácil fácil pra mim, eu senti.
Vim num mergulho só muito feliz por saber quem reencontraria aqui...
Nasci dos sagrados ventres de uma fada e de um bruxo… por isso, desde o início a vida sempre foi mágica pra mim…
Seres encantados me rodeiam desde sempre e me ajudam a lembrar do que não devo esquecer…
De vez enquando, os anjos descem e ficam comigo durante um tempo… depois se vão… foi com eles que conheci a morte e a saudade…
Olho pro céu, pro mar, pro verde e escuto aquela voz o tempo todo… está em todo lugar… a me evocar e conduzir…
Do lugar que estou, a memória de casa vem do olhar das crianças… das cantigas em rodas e cirandas… de um nariz vermelho pulsando amor por onde passa…
Meu sonho?, me perguntam os silêncios… nascer sempre até o depois daqui…
Que assim seja!

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

sonhambulações da Marcha Lenta...

Diz azul.. qual é o tamanho do sol?!!                                                     
Penso de lá ficar por algumas eternidades.   
Sonho todas noites com uma casa feita de estrelas e canto
localizada no raio direito de deus.
Deus...
Bem sinto que me quer pra floresta
cheia de seres inimagináveis e barulhentos ao raiar da madrugada.
Caminho no corpo dele a buscar sementes que me passarinhem pra sonho.
Quero ser o sonho de deus!
Trago em mim todo o universo
e de dentro dele sopro a existência
da palavra, do corpo, do gesto que por agora estou.
Fico pensando cá com meus botões, se é sempre assim...
Saímos de casa para em casa reconhecer que dela sempre brotamos.
Sinto saudade do que dizem que não existe:
amor, vassoura voadora, guarda-chuva mágico, jegue... alegria!
Será, meu deus, que tô destinada à sonhambulação eterna?
Que assim seja!
Olho o espelho.
Vejo tantas coisas, tantos seres, tantas histórias...
A menina dos meus olhos são muitas.
Pedra a ressoar ondas quando jogada no rio.
Tava aqui matutando como seria bom
chover de tanto dançar
raiar antes, depois e durante amar
brotar só de respirar.
Ai... que eu tô ficando é doidinha de vontade de ir bailar com deus.
É de noite que ele me aparece.
Pede colo, dizendo que tá com fome.
Ofereço flor!
Deus só come flor.
Mas não é com a boca não
nem olhando não
nem cheirando também não
nem tocando nadinha...
Só sentindo mesmo.
Daí a gente senta na rede e ele não fala nada...
Fica lá... abestalhado... olhando olhando olhando de olhos fechados
O silêncio.
Silêncio, diz ele, é quando ele nos abraça e nos traz pra dentro de seu corpo.
Eu fico é muito no silêncio!!!
Deve ser por isso quase todas as noites ele vem me procurar.
É que tem vez que até deus precisa ficar sozinho um pouco.
No sonho de deus eu sou tão plena quanto os passarinhos...
Com o corpo cheio de horizonte,
lampejo, no muro das retinas,
delicadezas tão pequenas capazes de fazer pequenos furos
pros vento e pra luz passar...
Depois ele vai embora dizendo que tá dentro de mim.
Não entendo não.
Sinto é cócegas!!!
É que pra ele me morar tem que virar menino.
E que bagunça ele faz aqui dentro!
Vixe, Maria!!!
Eu respiro suas pinturas a todo o instante.
De mãos dadas pela vida seguimos brincando
ora estando menino
ora menina
na eternidade do nosso sendo arco-íris.
E o que vem depois disso?, me perguntam às vezes...
Eu sei lá, uai!!!
Minha sapuência tá em sentir...
E tenho dito!   
                                  

sábado, 7 de outubro de 2017

desabafo...

Qual é o sincero sentido de nos matarmos uns aos outros?
Sinto dificuldades diante das guerras.
Elas são apenas o empenho dos que já não lembram mais suas raízes e sementes... 
ensurdecidos que estão para a luz.
E não falo apenas das guerras que passam todos os dias nos noticiários, mas das que carregamos no peito sem nem perceber, tão esquecidos que estamos de nós.
Quantos Herodes ainda hão de nascer, meu deus, nos solos da Terra?
Por quanto tempo ainda ficaremos assim: tolos e nulos?
A velharia da mesmice me cansa.
Julgamos com o discurso afiado o que não nos cabe julgar.
Oprimimos de forma primorosa todo o horizonte que nos cerca.
E no final desejamos ser feliz.
Acaso enlouquecemos?
Crianças morreram.
Crianças morrem todos os dias (nos apontam as estatísticas).
Não.
Isso é mentira.
Eu me recuso a acreditar em abutres.
Sou eu quem morre todos os dias.
Todos os dias cada um de nós está morrendo.
Seja na pele de crianças queimadas ou simplesmente ignoradas.
E enquanto não despertarmos atrocidades maiores podem acontecer.
É realmente isso o que queremos?
Me recuso a acreditar que a morte seja isso.
Me recuso a acreditar que só assim conseguimos viver.


No horizonte iluminado do meu coração todas as infâncias crescem em paz.