domingo, 6 de dezembro de 2015

O ser humano chamado criança

Para começar, afirmo que o ser humano não está pronto. É um por vir ainda por ser concebido, gestado, parido e nascido. Muitos são os estudos que apontam, hoje, para a necessidade de nos prepararmos internamente para tal acontecimento, dentre eles destaco a pesquisa realizada por Eleanor Luzes, com a Ciência do Início da Vida, na qual nos alerta para a possibilidade de criação de uma nova geração humana (conf. http://www.cienciadoiniciodavida.org/). Em tal pesquisa, mais do que apontar a criança e suas necessidades vitais, temos profundas reflexões acerca do ser humano e de seu acontecimento histórico. Dentro de uma perspectiva que reúne ciência, filosofia e religião, Eleanor nos relembra a sacralidade que somos, atualmente, reconhecida pelos grandes mestres da ciência. Para nós, o que interessa é o entendimento de que falar de criança não diz respeito à faixa etária de um determinado grupo de seres, mas ao cerne potencial do existir humano. Nesse sentido, consideramos fundamental a presença da arte, mais precisamente da poesia, para tecermos aqui nosso próprio entendimento a respeito deste tema.
Muito se tem falado quando o assunto é criança ou infância, principalmente, em slogans como “Cultura da infância”, “Cultura da criança”, “Universo infantil” etc. Em textos anteriores, proponho o desvelamento dessas falácias, pois ao repetirmos tais conceitos nem sempre paramos para pensar no sentido que atribuímos à palavra “cultura”. Infelizmente, hoje, “cultura” e “cultural” são palavras desgastadas em função da lógica de mercado que temos. Quando pensamos em algo cultural, logo nos vem à cabeça produto cultural, ou seja, algo que possa ser comercializado, vendido e que, obviamente, seja lucrativo para as partes envolvidas. Em nosso país, há ainda outro obstáculo no entendimento dessa palavra que diz respeito à política cultural desenvolvida, na qual há o reforço muito maior na garantia de lucro dos produtos do que propriamente do desenvolvimento humano acontecido durante os processos de criação. Tais empecilhos nos fazem cair em graves armadilhas à medida que nos torna massa de manobra para a reiteração do esquecimento do verdadeiro sentido desta palavra. Ao dizer “verdadeiro sentido” aponto para o sentimento mais profundo que tal palavra carrega em sua história, pois assim como nós que as criamos, também as palavras acontecem historicamente e merecem respeito por isso. O “verdadeiro sentido” não é a verdade absoluta ou intelectual, mas diz respeito ao cheiro, ao gosto, ao toque de terra que cada palavra carrega em seu ventre. Daí nossa necessidade de partir dos terreiros da poesia para pensá-la.
Cultura é em primeiro lugar cultivo. E todo cultivo é cultivo do que a própria coisa já é, ou seja, se vamos cultivar uma mangueira não iremos fazê-lo desejando que esta se torne uma laranjeira ou que nasça à beira mar. Todo cultivo é estudo profundo e semeadura respeitosa do que não desejamos esquecer. Todo cultivo é concrescência de memória. Somente o cultivo nos possibilita a encarnação, ou seja, o tornar-se corpo daquilo que sentimos ser essencial para o nosso existir. Além disso, o cultivo é algo especialmente humano. Um fazer inconfundível no qual está em jogo o semear do universo que este mesmo humano acredita ser necessário não cair em esquecimento. Um cultivo alinhavado à nossa humanidade mais interna e particular é cultura, ou seja, possibilidade de criação, transbordamento sem fronteiras. Diante disso temos um impasse, pois tudo o que comumente se chama de cultura está em desacordo com isso. Como pensar em cultivo, desta forma, com “culturas” que declaram guerras entre si? Parece até ingenuidade, não é? Pois é. Mas o equívoco está no entendimento do cultivo como algo territorialista e anti-humano. É porque os grandes donos da cultura "sabem de tudo o que existe e não existe" que acreditam poder determinar a vida dos que, para eles, não estão no comando.
No entanto, se observarmos a terra em cultivo essa lógica não existe. É absolutamente ilusória e, portanto, precisamos urgentemente desconstruí-la para que possamos, então, entrar no terreno chamado criança. A base de todo cultivo é o resguardo da criação, pois tal empreendimento visa o surgir ou ressurgir do que se deseja criar. Nesse sentido, cultivar é sempre processo jamais um fim em si mesmo. Assim é que não podemos mais confundir jardineiros com agricultores, pois os primeiros devolvem a terra para ela mesma; já os segundos, exigem da terra resultados favoráveis aos estímulos dados. Não há intervenção na ação dos primeiros, mas troca e há os que conversam com as sementes, alegando que as plantas ficam felizes quando ouvem nossa voz. Por outro lado, os segundos não apenas intervém como interferem no livre arbítrio das sementes, modificando sua composição primária e descaracterizando-a com fins à lucratividade. Deste modo podemos concluir que há dois modos de exercer a cultura, ou seja, o cultivo: um com base na jardinagem e outro na agroeconomia. O caminho a seguir é uma escolha particular e intransferível, determinante do mundo que vivemos no hoje e deixaremos surgir no amanhã. Atualmente, se formos bem honestos com nossa consciência, iremos nos perceber embebidos no mundo cultural agroeconomico em todas as esferas de nossas vidas, pois grande parte de nossa ação no mundo é realizada em função de um lucro imediato.
Observemos o entendimento que temos de criança, tema de nosso diálogo. Converse com as pessoas e lhes questione a respeito do que pensam a respeito desse tema. É possível que muitos digam: “Ah... criança é a melhor fase da vida, pois não tem responsabilidade”; “Criança? Credo! Ainda bem que já passou!”; “Lugar de criança é na escola e não na rua.” e por aí vai. Frases prontas fruto da falta de intimidade emocional que temos conosco. Há certa sinceridade nos sentimentos expressos por quem defende tais ideias, mas é nítida a ausência de escuta do que se é dito. Tal ausência é o grande e lucrativo produto cultural dos agroeconomistas da infância. Dentro dessa lógica, a venda de falácias e esquecimentos é a base para que sejamos o que eles tanto desejam: pulsão, perpetuação e extermínio gradativo da criança em cada um de nós. A concretização disso aparece no conceito de adulto que temos. E para os habitantes desta forma de cultura o adulto é justamente aquele que conseguiu se livrar das masmorras da infância. Reparem que aqui: adulto tem que ser sério para ser levado a sério; adulto não tem tempo para brincadeiras; adulto é sempre mais complexo assim como sua vida; adulto tem sempre razão. Aqui não há espaço para a criança, a não ser que ela seja fonte de lucro.
Por outro lado, dentro da lógica cultural do jardineiro uma árvore é sempre o acontecer primeiro de suas sementes dispostas ao chão. Ela tanto não esquece que torna sua origem memória a cada nova estação. O jardineiro sabe disso e, por isso, exerce o silêncio e a observação desse mistério. Os herdeiros da cultura dos jardins sentem que toda criança, por exemplo, sabe o que veio fazer na vida, assim como a mangueira sabe que é mangueira, e busca regá-la com elementos que lhe favoreçam. Elementos não são informações, como o que acontece em nossas escolas, mas formação interna e inteira. Formar é escutar. O jardineiro diante de uma criança a escuta, ajoelhado aos seus pés e com os olhos bem atentos aos olhos dela, pois é assim que a semente humana pede para ser regada. O ato de regar, quando a questão é ser humano, não se limita a dar-lhe alimento ou água, mas principalmente escuta e acolhimento em seus sentimentos. Uma criança diante de um jardineiro se acalma, pois sabe que será ouvida. Ou então, pelo fato de ter passado muito tempo silenciada, fica eufórica ao vê-lo e a bagunça, num primeiro momento, é generalizada. A presença de um jardineiro é fácil de reconhecer: os adultos agroeconomistas não vão muito com sua cara, apesar de serem extremamente educados, isto é, formatados para tal.
Dentro da cultura dos jardins, a criança é o estado vital no qual possibilita o existir do adulto genuíno. Para os que aqui habitam, há o discernimento de que no mundo cultural dos agroeconomistas o adulto ainda não nasceu de fato, pois, como as sementes precisaram ser modificadas, não houve tempo suficiente para que elas se reconhecessem no que eram de fato e tiveram que acreditar no que lhes contavam as outras sementes, já envelhecidas, porém não crescidas. Para os jardineiros, a vida adulta é a alegria de se saber em infância eternamente. Crescer é ser o por vir do fruto, para o alimento de chãos e pássaros, pois sentem que em estado verbal de crescimento nada se vai ou esvai, pois torna-se sangue, suor, existência. É evidente que para eles, os jardineiros, criança é cada ser que nasce e comunga, inclusive com os seres humanos, o corpo sagrado da luz. Assim é que impedir a criança da vida, de ser o que é, é impedir-se, mutilar-se, aniquilar-se. A criança é, aqui, cada um de nós que se percebe vivo e no por vir de algo mais.
Por ser jardineira, afirmo que a criança é o nascimento incessante e insaciável de uma nova forma de ser dentro da vida, do mundo, da história nossa e das gentes. É oração de brincar: lugar onde todos os rios, mares e inícios se mantém em resguardo, esperando pelo nosso despertar. Por isso, não há como matar a criança, pois enquanto houver nascedouro ela estará lá. Notícias das mais diversas nos fazem desacreditar de nossa tarefa enquanto parturientes e parteiros. Disseminam a lógica do medo, nos fazendo acreditar que gestar é coisa do passado. Mas, em verdade, vos digo que quem cresce para criança não tem outro caminho: gestar é seu destino. Gestar todos os seres dentro do sangue. As vidas retiradas devem ser honradas por cada um que agora se concebe, se gesta, se pare, se nasce. Dentro de nós, em nossa pequena loucura particular, todas as humanidades em infância abortadas estarão em cultivo... Alguns poderão não acreditar... Natural... seu cultivo é de outra ordem, como dissemos a pouco.
A cultura dos jardins concebe a criança como a capacidade de não explicar, não saber, fundamentais para a escuta com gestos; o perdão com gestos; o desejo com gestos. Para nós, a criança é o gesto. E carregar dentro da alma o gesto é ser o corpo engravidado de toda a realidade. A criança é a proclamação em gargalhadas do silêncio, do afeto e de tudo o que pode desdizê-los. Difícil para quem já se alienou e sabe de muitas coisas se acolher em sua própria criança. A cultura dos agroeconomistas da infância semeiam pessoas em estado atônito de sepulto. Seus olhos espelham a matança de seus gestos. Daí a facilidade para explicarem, destruírem e se evadirem da  responsabilidade de suas ações. O que esperar de quem carrega em sepulto sua própria criança? Basta olhá-los. O que os jardineiros já descobriram é que a criança desconhece a morte tal qual tantos homens durante tantos séculos semearam. Pois para elas a morte é a morte da semente: brincar de sempre ser por vir. A criança é o brincar que temporiza o não ser do tempo. Dentro dela o caminho é de assunção.
É possível que o comércio para crianças tenha sido feito por homens que não cresceram. Só os que não cresceram comercializam luz. Pássaros não comercializam o pólen. Nem é sabido que as árvores cobrem aluguéis para eles. Por que então o fazemos nós, se somos tão pássaros e árvores quanto os pássaros e as árvores? A criança é a loucura. A doce loucura de não haver fim.




Publicado na Revista Labirinto Literário, Nº 42 ∙ JAN/FEV/MAR 2016.