Para começar,
afirmo que o ser humano não está pronto. É um por vir ainda por ser concebido,
gestado, parido e nascido. Muitos são os estudos que apontam, hoje, para a
necessidade de nos prepararmos internamente para tal acontecimento, dentre eles
destaco a pesquisa realizada por Eleanor Luzes, com a Ciência do Início da
Vida, na qual nos alerta para a possibilidade de criação de uma nova geração
humana (conf. http://www.cienciadoiniciodavida.org/). Em tal pesquisa, mais do que apontar a criança e suas necessidades
vitais, temos profundas reflexões acerca do ser humano e de seu acontecimento
histórico. Dentro de uma perspectiva que reúne ciência, filosofia e religião,
Eleanor nos relembra a sacralidade que somos, atualmente, reconhecida pelos
grandes mestres da ciência. Para nós, o que interessa é o entendimento de que
falar de criança não diz respeito à faixa etária de um determinado grupo de
seres, mas ao cerne potencial do existir humano. Nesse sentido, consideramos
fundamental a presença da arte, mais precisamente da poesia, para tecermos aqui
nosso próprio entendimento a respeito deste tema.
Muito se tem
falado quando o assunto é criança ou infância, principalmente, em slogans como
“Cultura da infância”, “Cultura da criança”, “Universo infantil” etc. Em textos
anteriores, proponho o desvelamento dessas falácias, pois ao repetirmos tais
conceitos nem sempre paramos para pensar no sentido que atribuímos à palavra
“cultura”. Infelizmente, hoje, “cultura” e “cultural” são palavras desgastadas
em função da lógica de mercado que temos. Quando pensamos em algo cultural,
logo nos vem à cabeça produto cultural, ou seja, algo que possa ser
comercializado, vendido e que, obviamente, seja lucrativo para as partes
envolvidas. Em nosso país, há ainda outro obstáculo no entendimento dessa
palavra que diz respeito à política cultural desenvolvida, na qual há o reforço
muito maior na garantia de lucro dos produtos do que propriamente do
desenvolvimento humano acontecido durante os processos de criação. Tais
empecilhos nos fazem cair em graves armadilhas à medida que nos torna massa de
manobra para a reiteração do esquecimento do verdadeiro sentido desta palavra.
Ao dizer “verdadeiro sentido” aponto para o sentimento mais profundo que tal
palavra carrega em sua história, pois assim como nós que as criamos, também as
palavras acontecem historicamente e merecem respeito por isso. O “verdadeiro
sentido” não é a verdade absoluta ou intelectual, mas diz respeito ao cheiro,
ao gosto, ao toque de terra que cada palavra carrega em seu ventre. Daí nossa
necessidade de partir dos terreiros da poesia para pensá-la.
Cultura é em
primeiro lugar cultivo. E todo cultivo é cultivo do que a própria coisa já é,
ou seja, se vamos cultivar uma mangueira não iremos fazê-lo desejando que esta se
torne uma laranjeira ou que nasça à beira mar. Todo cultivo é estudo profundo e
semeadura respeitosa do que não desejamos esquecer. Todo cultivo é
concrescência de memória. Somente o cultivo nos possibilita a encarnação, ou
seja, o tornar-se corpo daquilo que sentimos ser essencial para o nosso
existir. Além disso, o cultivo é algo especialmente humano. Um fazer
inconfundível no qual está em jogo o semear do universo que este mesmo humano
acredita ser necessário não cair em esquecimento. Um cultivo alinhavado à nossa
humanidade mais interna e particular é cultura, ou seja, possibilidade de
criação, transbordamento sem fronteiras. Diante disso temos um impasse, pois
tudo o que comumente se chama de cultura está em desacordo com isso. Como
pensar em cultivo, desta forma, com “culturas” que declaram guerras entre si?
Parece até ingenuidade, não é? Pois é. Mas o equívoco está no entendimento do
cultivo como algo territorialista e anti-humano. É porque os grandes donos da
cultura "sabem de tudo o que existe e não existe" que acreditam poder determinar
a vida dos que, para eles, não estão no comando.
No entanto, se
observarmos a terra em cultivo essa lógica não existe. É absolutamente ilusória
e, portanto, precisamos urgentemente desconstruí-la para que possamos, então,
entrar no terreno chamado criança. A base de todo cultivo é o resguardo da
criação, pois tal empreendimento visa o surgir ou ressurgir do que se deseja
criar. Nesse sentido, cultivar é sempre processo jamais um fim em si mesmo.
Assim é que não podemos mais confundir jardineiros com agricultores, pois os
primeiros devolvem a terra para ela mesma; já os segundos, exigem da terra
resultados favoráveis aos estímulos dados. Não há intervenção na ação dos
primeiros, mas troca e há os que conversam com as sementes, alegando que as
plantas ficam felizes quando ouvem nossa voz. Por outro lado, os segundos não
apenas intervém como interferem no livre arbítrio das sementes, modificando sua
composição primária e descaracterizando-a com fins à lucratividade. Deste modo
podemos concluir que há dois modos de exercer a cultura, ou seja, o cultivo: um com base na jardinagem e outro na agroeconomia. O caminho a seguir é uma escolha
particular e intransferível, determinante do mundo que vivemos no hoje e
deixaremos surgir no amanhã. Atualmente, se formos bem honestos com nossa
consciência, iremos nos perceber embebidos no mundo cultural agroeconomico em
todas as esferas de nossas vidas, pois grande parte de nossa ação no mundo é
realizada em função de um lucro imediato.
Observemos o
entendimento que temos de criança, tema de nosso diálogo. Converse com as
pessoas e lhes questione a respeito do que pensam a respeito desse tema. É
possível que muitos digam: “Ah... criança é a melhor fase da vida, pois não tem
responsabilidade”; “Criança? Credo! Ainda bem que já passou!”; “Lugar de
criança é na escola e não na rua.” e por aí vai. Frases prontas fruto da falta
de intimidade emocional que temos conosco. Há certa sinceridade nos sentimentos
expressos por quem defende tais ideias, mas é nítida a ausência de escuta do
que se é dito. Tal ausência é o grande e lucrativo produto cultural dos
agroeconomistas da infância. Dentro dessa lógica, a venda de falácias e
esquecimentos é a base para que sejamos o que eles tanto desejam: pulsão,
perpetuação e extermínio gradativo da criança em cada um de nós. A
concretização disso aparece no conceito de adulto que temos. E para os
habitantes desta forma de cultura o adulto é justamente aquele que conseguiu se
livrar das masmorras da infância. Reparem que aqui: adulto tem que ser sério
para ser levado a sério; adulto não tem tempo para brincadeiras; adulto é
sempre mais complexo assim como sua vida; adulto tem sempre razão. Aqui não há
espaço para a criança, a não ser que ela seja fonte de lucro.
Por outro lado, dentro da lógica cultural do jardineiro uma árvore é sempre o acontecer primeiro de suas sementes dispostas ao chão. Ela tanto não esquece que torna sua origem memória a cada nova estação. O jardineiro sabe disso e, por isso, exerce o silêncio e a observação desse mistério. Os herdeiros da cultura dos jardins sentem que toda criança, por exemplo, sabe o que veio fazer na vida, assim como a mangueira sabe que é mangueira, e busca regá-la com elementos que lhe favoreçam. Elementos não são informações, como o que acontece em nossas escolas, mas formação interna e inteira. Formar é escutar. O jardineiro diante de uma criança a escuta, ajoelhado aos seus pés e com os olhos bem atentos aos olhos dela, pois é assim que a semente humana pede para ser regada. O ato de regar, quando a questão é ser humano, não se limita a dar-lhe alimento ou água, mas principalmente escuta e acolhimento em seus sentimentos. Uma criança diante de um jardineiro se acalma, pois sabe que será ouvida. Ou então, pelo fato de ter passado muito tempo silenciada, fica eufórica ao vê-lo e a bagunça, num primeiro momento, é generalizada. A presença de um jardineiro é fácil de reconhecer: os adultos agroeconomistas não vão muito com sua cara, apesar de serem extremamente educados, isto é, formatados para tal.
Por outro lado, dentro da lógica cultural do jardineiro uma árvore é sempre o acontecer primeiro de suas sementes dispostas ao chão. Ela tanto não esquece que torna sua origem memória a cada nova estação. O jardineiro sabe disso e, por isso, exerce o silêncio e a observação desse mistério. Os herdeiros da cultura dos jardins sentem que toda criança, por exemplo, sabe o que veio fazer na vida, assim como a mangueira sabe que é mangueira, e busca regá-la com elementos que lhe favoreçam. Elementos não são informações, como o que acontece em nossas escolas, mas formação interna e inteira. Formar é escutar. O jardineiro diante de uma criança a escuta, ajoelhado aos seus pés e com os olhos bem atentos aos olhos dela, pois é assim que a semente humana pede para ser regada. O ato de regar, quando a questão é ser humano, não se limita a dar-lhe alimento ou água, mas principalmente escuta e acolhimento em seus sentimentos. Uma criança diante de um jardineiro se acalma, pois sabe que será ouvida. Ou então, pelo fato de ter passado muito tempo silenciada, fica eufórica ao vê-lo e a bagunça, num primeiro momento, é generalizada. A presença de um jardineiro é fácil de reconhecer: os adultos agroeconomistas não vão muito com sua cara, apesar de serem extremamente educados, isto é, formatados para tal.
Dentro da
cultura dos jardins, a criança é o estado vital no qual possibilita o existir
do adulto genuíno. Para os que aqui habitam, há o discernimento de que no mundo
cultural dos agroeconomistas o adulto ainda não nasceu de fato, pois, como as
sementes precisaram ser modificadas, não houve tempo suficiente para que elas
se reconhecessem no que eram de fato e tiveram que acreditar no que lhes
contavam as outras sementes, já envelhecidas, porém não crescidas. Para os
jardineiros, a vida adulta é a alegria de se saber em infância eternamente.
Crescer é ser o por vir do fruto, para o alimento de chãos e pássaros, pois
sentem que em estado verbal de crescimento nada se vai ou esvai, pois torna-se
sangue, suor, existência. É evidente que para eles, os jardineiros, criança é
cada ser que nasce e comunga, inclusive com os seres humanos, o corpo sagrado
da luz. Assim é que impedir a criança da vida, de ser o que é, é impedir-se,
mutilar-se, aniquilar-se. A criança é, aqui, cada um de nós que se percebe vivo
e no por vir de algo mais.
Por ser
jardineira, afirmo que a criança é o nascimento incessante e insaciável de uma
nova forma de ser dentro da vida, do mundo, da história nossa e das gentes. É
oração de brincar: lugar onde todos os rios, mares e inícios se mantém em
resguardo, esperando pelo nosso despertar. Por isso, não há como matar a
criança, pois enquanto houver nascedouro ela estará lá. Notícias das mais
diversas nos fazem desacreditar de nossa tarefa enquanto parturientes e
parteiros. Disseminam a lógica do medo, nos fazendo acreditar que gestar é
coisa do passado. Mas, em verdade, vos digo que quem cresce para criança não
tem outro caminho: gestar é seu destino. Gestar todos os seres dentro do
sangue. As vidas retiradas devem ser honradas por cada um que agora se concebe,
se gesta, se pare, se nasce. Dentro de nós, em nossa pequena loucura
particular, todas as humanidades em infância abortadas estarão em cultivo...
Alguns poderão não acreditar... Natural... seu cultivo é de outra ordem, como dissemos
a pouco.
A cultura dos
jardins concebe a criança como a capacidade de não explicar, não saber,
fundamentais para a escuta com gestos; o perdão com gestos; o desejo com
gestos. Para nós, a criança é o gesto. E carregar dentro da alma o gesto é ser
o corpo engravidado de toda a realidade. A criança é a proclamação em
gargalhadas do silêncio, do afeto e de tudo o que pode desdizê-los. Difícil
para quem já se alienou e sabe de muitas coisas se acolher em sua própria
criança. A cultura dos agroeconomistas da infância semeiam pessoas em estado
atônito de sepulto. Seus olhos espelham a matança de seus gestos. Daí a
facilidade para explicarem, destruírem e se evadirem da responsabilidade de suas ações. O que esperar
de quem carrega em sepulto sua própria criança? Basta olhá-los. O que os
jardineiros já descobriram é que a criança desconhece a morte tal qual tantos
homens durante tantos séculos semearam. Pois para elas a morte é a morte da
semente: brincar de sempre ser por vir. A criança é o brincar que temporiza o
não ser do tempo. Dentro dela o caminho é de assunção.
É possível que o
comércio para crianças tenha sido feito por homens que não cresceram. Só os que
não cresceram comercializam luz. Pássaros não comercializam o pólen. Nem é
sabido que as árvores cobrem aluguéis para eles. Por que então o fazemos nós,
se somos tão pássaros e árvores quanto os pássaros e as árvores? A criança é a
loucura. A doce loucura de não haver fim.
Publicado na Revista Labirinto Literário, Nº 42 ∙ JAN/FEV/MAR 2016.