sábado, 29 de abril de 2017

E o palhaço o que é? Plantador de bonitezas no coração da vida, ué?!

Para os mais íntimos... Palhaça Marcha Lenta!

 Tudo começou quando, lá na infância, durante muitas aulas de matemática, as borboletas vinham me visitar pela janela da sala de aula. Eu estudava numa escola que ficava de frente pra Baía de Guanabara e tinha muitas árvores em seu terreno. Era tão bom ir para lá... E o que mais me encantava? Conversar com as borboletas! Foram anos de recuperação em matemática por causa disso, mas nunca me arrependi... Elas tinham tantas coisas para me contar em seu silêncio que eu praticamente nem ouvia a voz da professora. Quando chegava em casa a alegria era tanta que minha mãe, ao invés de me pôr de castigo ou ralhar comigo por conta de tantas insignificâncias, me regava ainda mais com livros e histórias. Meu pai, que sempre foi muito engraçado, ao ouvir o que eu tinha aprendido com as borboletas na escola, dizia me acarinhando: “Mas é uma pateta mesmo! A pateta mais pateta do papai!”. Eu não entendia muito aquele apelido, mas sempre senti tanto amor vindo de meu pai que nem me incomodava.
Até que um dia na escola, durante uma aula de Educação Física, anos mais tarde, a professora, sem saber o que faria com a turma, simplesmente deu a bola e intimou que todos jogassem futebol. Foi uma loucura, pois sempre em toda turma tem aqueles seres monstruosos querendo vencer e impor sua força e brutalidade aos outros... E eu sempre fui baixinha... Pra piorar a situação me colocaram no gol. Minha cabeça me dizia que aquilo era para me sacanear, mas meu coração estava tranqüilo e disposto a não fazer nada. Minha sorte é que eu sempre tive bons amigos e, durante a partida, alguns dos meninos ficaram no gol comigo... uma bagunça! No que a bola vinha na minha direção, eu corria em direção oposta. Se alguma brutamontes ameaçasse me pegar ou chutar a bola para me machucar, eu me escondia atrás dos meninos, que sempre me protegiam. Nessas horas, elas gritavam com muita raiva e em coro: “Mas é uma songamonga mesmo!”. Aquilo me feria um pouco, mas eu sempre tinha em mente as palavras sábias de minha avó: “Filha, lembre-se sempre que seu nome é você e nem todos sabem disso, por isso dizem ofensas que no fundo revelam a elas mesmas!”.
Os anos foram passando e, curiosamente, eu fui convocada pela vida a ser professora. No magistério descobrir que não aguento ser apenas um ser que marca freqüências, reprova alunos, impede as crianças de brincar, tem que ser sempre sisudo para ser levado a sério... Aff!!! Percebi que também precisava ser outras, tal qual o mestre... Precisava continuar minha conversa com as borboletas. Foi aí que nasceram em mim a poesia e o teatro, artes que me reconduziram às minhas amadas palavras aladas da infância. Em estado verbal de poesia e teatro comecei a me dar conta da riqueza daqueles momentos descritos acima. Quantos elementos! Quantas cores! Quantas outras de mim já estavam ali, latentes, esperando o momento certo para desabrochar.
No desejo de sentir meu cheiro, me afastei do mar e rumei para a serra, lugar onde algo de muito mágico aconteceu: conheci seres tão patetas quanto eu. Pessoas encantadas e dispostas ao desencontro de ser, com as quais pude continuar o desafio de raspar as tintas com que haviam me pintado os sentidos. Comecei a sentir a necessidade de revisitar minha história, minhas dores e conflitos, principalmente, e transformá-los em potência criativa, contrariando todos os códigos psicossociais que nos dizem todos os dias que são justamente essas coisas que nos adoecem. Quanta bobagem! Pois foi na beleza encontrada na dor que minha patetice de infância começou a tomar contornos de borboleta. Como são potentes as perdas de quem amamos, as distâncias que não desejamos, os fracassos que não esperamos, as decepções que quase nos aborta o caminho. Foi então que descobri: meu cheiro sempre teve aroma de palhaço!
Ser palhaço... Quando pequena olhava para aquele nariz vermelho e me perguntava: “Como consegue sorrir se seu nariz está sangrando?!”. Hoje procuro reencontrar essa intuição de infância, que já me dizia o que era verdadeiramente sorrir. Hoje meu sorrir resguarda e revela o que sou de mais íntimo com as borboletas: Marcha Lenta, luz interna vista por meu pai após uma longa conversa:
- Pai, você é o maior palhaço da minha vida. Você foi a minha maior dor! Não é maravilhoso!
- É, filha, você realmente é diferente... nunca regulou muito bem... tem a quem puxar! – apontando para si mesmo.
- Mas, pai, sou uma palhaça sem nome... ainda não consigo ouvir...
- Hahaha... natural! Você sempre foi devagar... lerda mesmo, sabe?! Minha eterna Pateta! Olha aí: Pateta!
- Não! Pateta já existe... Sei lá! É outra palavra que pulsa em mim... Mas não consigo ouvir!
Foi quando meu pai, com seu sonho de astronauta, me levou para ver as estrelas. Ficamos em silêncio durante tanto tempo que quase me esqueci do que havíamos falado antes. Ele me olhou profundamente e, como de costume, contou uma piada enigmática. Para mim, sempre, todas as piadas são enigmáticas. Quase nunca as entendo e, quando entendo e começo a rir, ninguém sabe mais o motivo de minha risada.
- Hahahaha... Eu sabia! Escute, filha,- colocando as mãos em meu coração – ele pulsa: Marcha Lenta!
De agora só posso dizer que já não consigo mais não ser o que sou... E eu sou, entre tantas outras coisas, Marcha Lenta: palhaça-poeta nascida para plantar a demora nos olhos das gentes. Como sou grata aos coros violentos da infância! Às sábias e generosas dores... O que seriam dos palhaços e dos poetas sem elas?
No alto das montanhas, cheias de árvores e rios, as borboletas são por toda a parte. 

A infância, eu sendo Marcha Lenta e minha mais luminosa borboleta, 
minha irmã e companheira, Lua Cheia.
                 

Nenhum comentário:

Postar um comentário