Para os mais íntimos... Palhaça Marcha Lenta!
Tudo começou
quando, lá na infância, durante muitas aulas de matemática, as borboletas
vinham me visitar pela janela da sala de aula. Eu estudava numa escola que
ficava de frente pra Baía de Guanabara e tinha muitas árvores em seu terreno.
Era tão bom ir para lá... E o que mais me encantava? Conversar com as
borboletas! Foram anos de recuperação em matemática por causa disso, mas nunca
me arrependi... Elas tinham tantas coisas para me contar em seu silêncio que eu
praticamente nem ouvia a voz da professora. Quando chegava em casa a alegria
era tanta que minha mãe, ao invés de me pôr de castigo ou ralhar comigo por
conta de tantas insignificâncias, me regava ainda mais com livros e histórias.
Meu pai, que sempre foi muito engraçado, ao ouvir o que eu tinha aprendido com
as borboletas na escola, dizia me acarinhando: “Mas é uma pateta mesmo! A
pateta mais pateta do papai!”. Eu não entendia muito aquele apelido, mas sempre
senti tanto amor vindo de meu pai que nem me incomodava.
Até que um dia na escola, durante uma aula de
Educação Física, anos mais tarde, a professora, sem saber o que faria com a
turma, simplesmente deu a bola e intimou que todos jogassem futebol. Foi uma
loucura, pois sempre em toda turma tem aqueles seres monstruosos querendo
vencer e impor sua força e brutalidade aos outros... E eu sempre fui
baixinha... Pra piorar a situação me colocaram no gol. Minha cabeça me dizia
que aquilo era para me sacanear, mas meu coração estava tranqüilo e disposto a
não fazer nada. Minha sorte é que eu sempre tive bons amigos e, durante a
partida, alguns dos meninos ficaram no gol comigo... uma bagunça! No que a bola
vinha na minha direção, eu corria em direção oposta. Se alguma brutamontes
ameaçasse me pegar ou chutar a bola para me machucar, eu me escondia atrás dos
meninos, que sempre me protegiam. Nessas horas, elas gritavam com muita raiva e
em coro: “Mas é uma songamonga mesmo!”. Aquilo me feria um pouco, mas eu sempre
tinha em mente as palavras sábias de minha avó: “Filha, lembre-se sempre que
seu nome é você e nem todos sabem disso, por isso dizem ofensas que no fundo
revelam a elas mesmas!”.
Os anos foram passando e, curiosamente, eu fui
convocada pela vida a ser professora. No magistério descobrir que não aguento ser
apenas um ser que marca freqüências, reprova alunos, impede as crianças de
brincar, tem que ser sempre sisudo para ser levado a sério... Aff!!! Percebi
que também precisava ser outras, tal qual o mestre... Precisava continuar minha
conversa com as borboletas. Foi aí que nasceram em mim a poesia e o teatro,
artes que me reconduziram às minhas amadas palavras aladas da infância. Em
estado verbal de poesia e teatro comecei a me dar conta da riqueza daqueles
momentos descritos acima. Quantos elementos! Quantas cores! Quantas outras de
mim já estavam ali, latentes, esperando o momento certo para desabrochar.
No desejo de sentir meu cheiro, me afastei do mar e
rumei para a serra, lugar onde algo de muito mágico aconteceu: conheci seres
tão patetas quanto eu. Pessoas encantadas e dispostas ao desencontro de ser,
com as quais pude continuar o desafio de raspar as tintas com que haviam me
pintado os sentidos. Comecei a sentir a necessidade de revisitar minha
história, minhas dores e conflitos, principalmente, e transformá-los em
potência criativa, contrariando todos os códigos psicossociais que nos dizem
todos os dias que são justamente essas coisas que nos adoecem. Quanta bobagem!
Pois foi na beleza encontrada na dor que minha patetice de infância começou a
tomar contornos de borboleta. Como são potentes as perdas de quem amamos, as
distâncias que não desejamos, os fracassos que não esperamos, as decepções que
quase nos aborta o caminho. Foi então que descobri: meu cheiro sempre teve
aroma de palhaço!
Ser palhaço... Quando pequena olhava para aquele
nariz vermelho e me perguntava: “Como consegue sorrir se seu nariz está
sangrando?!”. Hoje procuro reencontrar essa intuição de infância, que já me dizia
o que era verdadeiramente sorrir. Hoje meu sorrir resguarda e revela o que sou
de mais íntimo com as borboletas: Marcha Lenta, luz interna vista por meu pai
após uma longa conversa:
- Pai, você é o maior palhaço da minha vida. Você
foi a minha maior dor! Não é maravilhoso!
- É, filha, você realmente é diferente... nunca
regulou muito bem... tem a quem puxar! – apontando para si mesmo.
- Mas, pai, sou uma palhaça sem nome... ainda não
consigo ouvir...
- Hahaha... natural! Você sempre foi devagar...
lerda mesmo, sabe?! Minha eterna Pateta! Olha aí: Pateta!
- Não! Pateta já existe... Sei lá! É outra palavra
que pulsa em mim... Mas não consigo ouvir!
Foi quando meu pai, com seu sonho de astronauta, me
levou para ver as estrelas. Ficamos em silêncio durante tanto tempo que quase
me esqueci do que havíamos falado antes. Ele me olhou profundamente e, como de
costume, contou uma piada enigmática. Para mim, sempre, todas as piadas são
enigmáticas. Quase nunca as entendo e, quando entendo e começo a rir, ninguém
sabe mais o motivo de minha risada.
- Hahahaha... Eu sabia! Escute, filha,- colocando as
mãos em meu coração – ele pulsa: Marcha Lenta!
De agora só posso dizer que já não
consigo mais não ser o que sou... E eu sou, entre tantas outras coisas, Marcha
Lenta: palhaça-poeta nascida para plantar a demora nos olhos das gentes. Como
sou grata aos coros violentos da infância! Às sábias e generosas dores... O que
seriam dos palhaços e dos poetas sem elas?
No alto das montanhas, cheias de árvores e rios, as
borboletas são por toda a parte.
A infância, eu sendo Marcha Lenta e minha mais
luminosa borboleta,
minha irmã e companheira, Lua Cheia.
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