domingo, 5 de abril de 2020

Rotina e cotidiano em tempos de pandemia Repensando o lugar da Educação Infantil


 Bianka Barbosa


Conhecer o humano é, antes de tudo, situá-lo no universo, e não separá-lo dele. [...], todo conhecimento deve contextualizar seu objeto, para ser pertinente. Quem somos? é inseparável de Onde estamos?, De onde viemos?, Para onde vamos?.
Edgar Morin


1. Contexto só existe no plural

Para iniciarmos nossa reflexão, faz-se necessário evocar a pluralidade presente em todas as coisas que existem e/ou acontecem conosco, com o mundo e com a vida. Explico: partindo do pressuposto etimológico que nos afirma que a palavra “contexto” vem do verbo latino contexere, significando “entrelaçar, reunir tecendo”; e que o Dicionário Michaelis nos aponta outros tantos significados possíveis para tal palavra, tais como:
1.      Conjunto de circunstâncias interrelacionadas de cuja tessitura se depreende determinado fato ou situações; conjuntura;
2.      Conjunto de circunstâncias que envolvem um fato e são imprescindíveis para o entendimento deste;
3.      Encadeamento de ideias ou conjunto de circunstâncias que precedem ou se seguem a determinados elementos e pressupostos de um texto, aprofundando-se o significado quando de sua leitura e análise (entre outros),
Temos que o que chamamos de contexto é, genuinamente, plural e, por isso, pode nos apontar minimamente duas possibilidades: 1ª diz respeito à tessitura mais ampla, que reúne toda a coletividade e dá a ela seu estatuto de sociedade; 2ª diz respeito à peculiaridade vivida por cada pessoa humana em sua microestrutura social.
Nesse sentido, podemos afirmar que nosso atual contexto social está entrelaçado pelo advento da pandemia, intitulada corona vírus. Situação planetária que está deflagrando, de forma muito dolorosa, nossa falta de habilidade em nos tornarmos efetiva e amorosamente seres humanos. Sem dúvidas, nossas atitudes e escolhas diante da vida nos trouxeram a isso que chamamos de “isolamento social”, uma das únicas maneiras eficazes de conter a propagação da COVID-19. Tal contexto planetário está colocando todos os seres humanos diante da miséria ética, semeada em cada um de nós, e que ergueu impérios, proclamou a fome, instituiu a destruição e, entra século sai século, insiste na guerra e na violência como forma de dominação.
Agora em “isolamento social” tais bases estão estremecidas e o que surge como caminho é justamente o oposto: cooperação, solidariedade, dignificação da existência humana na Terra. Como podemos ver nos noticiários diariamente, tal caminho “novo” não está sendo fácil e desconfio que isso se dê justamente pela segunda significação da palavra “contexto” dita acima: a que diz respeito à peculiaridade vivida por cada pessoa humana.
Ora, para que o contexto planetário, no qual estamos inseridos de corpo inteiro, se reorganize, será preciso que os diferentes contextos individuais se conscientizem de seu poder de célula dentro do organismo vivo que é a Terra. Mas como exigir isso de pessoas-contextos que têm diariamente sua dignidade de existir extirpada em prol de outros contextos individuais que as exploram?
Sim. Para falar de contexto temos que utilizar o plural e nos deixar surpreender com o fato de que tal plural só o é por possuir RG, CPF, enderenço, história, cheiro, gestos próprios, sonhos, medos, esperanças e que, portanto, não pode ser simplesmente generalizado. Nesse sentido, abordarei o contexto que sou dentro desse contexto planetário que me reúne com tantos outros contextos.
Estou me sentindo num filme de ficção científica. Por vezes também tenho a sensação de estar dentro da obra de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira. Esperança e angústia são as melhores amigas dentro de meu coração agora. Será que também ficarei cega? Será conseguirei me manter sã tal qual a Mulher do médico? Não sei. Precisei fica longe de minha mãe e irmã. Estamos apenas eu e meu marido. Isso porque minha mãe tem 65 anos e, de acordo com a OMS, faz parte do grupo de risco da COVID-19. Meu amor por ela me fez ficar fisicamente longe. Fico em paz por saber que minha irmã está lá, cuidando e guardando nossa amada mãe. Nosso pai faleceu em novembro do ano passado. E o que antes estava sendo motivo de choro, hoje é a mais pura sensação de alívio, pois, se meu pai estivesse encarnado, não conseguiria cumprir o isolamento. Ele tinha 72 anos.
Além disso, sou professora. E todo esse contexto planetário tem-me feito refletir ainda mais e com mais intensidade a respeito do contexto que sou para minhas crianças e suas famílias. Antes da pandemia, confesso que desejava apenas realizar meu trabalho e cursar o mestrado da melhor forma possível, seguindo assim, ainda que sem perceber, a normose social de cada dia, responsável por escamotear a dimensão de mundo, de vida e de Terra que tais ações implicam. Hoje meu contexto interno e particular é de: saudade profunda de minhas meninas-raíz; alívio por saber que meu pai está fora dessa confusão toda; esperança de estar viva ao final de tudo isso e poder encontrar todas as pessoas que amo e compartilham comigo dessa travessia que é a vida. Hoje sou um contexto interno e particular que intensificou seu estado verbal de perdão com a mãe-Terra.

2. Contexto-escola e Contexto-família: diálogo não é cartilha

Como disse há pouco, sou professora, o que significa dizer que me preparei minimamente para exercer tal profissão. Sim. O magistério é um ofício e exige de quem o exerce conhecimento específico acerca da maneira como a aprendizagem acontece nos diferentes momentos do desenvolvimento humano, de modo a garantir que todos os estudantes tenham a possibilidade de realização plena de seus direitos de aprendizagem. Além disso, ser professor é ser pesquisador, não apenas de concepções e/ou paradigmas que possam lhe apontar caminhos possíveis, mas principalmente de sua própria prática enquanto criação sempre inaugural de novas possibilidades de aprendizagem.
Nesse sentido, cabe ao magistério, assim como a todo o corpo docente de uma escola, incluindo suas coordenações, orientações e direções, traduzir para toda comunidade escolar suas propostas e desafios com o objetivo de juntos serem de fato uma comunidade de aprendizagem. Dentro de uma comunidade de aprendizagem, contexto maior que engloba os diferentes contextos nela inseridos, o contexto-escola e o contexto-família precisam estabelecer um diálogo, mas isso não pode ser confundido com diretrizes e regras a serem seguidas de forma imposta tanto por uma quanto por outra. Há tanto no contexto-escola quanto no contexto-família especificidades que as limitam, isto é, dão contorno a seu corpo vivo e que, por isso, não podem ser violados. É assim que, mesmo neste contexto de pandemia, onde tanto adultos quanto crianças estão “isolados” em suas casas, escola e família precisam manter-se em discernimento. Ou seja, cada qual deve saber reconhecer seu papel dentro do contexto social do qual ambos fazem parte.
Filha da Idade Média, a escola da Modernidade optou por manter afastadas as famílias e insistiu, por séculos a fio, na pedagogia da segregação, cujo foco era a manutenção da lógica racionalista que, entre outras coisas, viu na interpretação errônea de separação entre corpo e mente o caminho possível para erguer o império do capitalismo. Entendidas desde simples ignorantes ou meros clientes, as famílias foram concebidas como algo à parte da escola, mas dificilmente como parte dela. Por outro lado, a história escolar das famílias deflagra experiências de diversas ordens: desde a esperança de ver seus filhos “se tornar alguém”; até a indiferença de pagar apenas mais uma prestadora de serviço dentre tantas outras. Ao optar pela cegueira, a escola encontrou então alguns caminhos: burocratizar a relação com as famílias através de festas, reuniões e chamadas de atenção quando diante da indisciplina dos estudantes. O caminho trilhado até então tinha uma aliado muito importante: a alienação, isto é, voltar-se para fora, para o externo que nos mascarou a gravidade do caminho que havíamos escolhidos.
Hoje, dentro do contexto planetário da pandemia, mais do que nunca a escola precisa repensar seu ser no mundo e no caminho percorrido até aqui. Pois, qual currículo será capaz de dignificar o enterro de um filho? Parece fatalista, mas o fato é que esta pandemia nos convoca enquanto profissionais da educação a pensarmos as condições humanas que, por séculos, formamos e perpetuamos para chegarmos até aqui. Foram anos de aulas de ciências para aprendermos a explorar os recursos naturais da Terra. Foram anos de aulas de português para corrigirmos nossos pais analfabetos e sentirmos vergonha deles. Foram anos de aulas de matemática para conceber vidas como mera estatística. Foram anos de aula de geografia para realmente acreditar que o Brasil se resume a Rio de Janeiro e São Paulo. Foram anos de aulas de história para elegermos sempre o colonizador. Continuaremos nesse caminho? Hoje, uma série de escolas está entupindo os estudantes com falsas verdades e não estão dando tempo nem para eles nem para seus professores conversarem a respeito de todo o medo, angústia e esperança que tal momento nos traz. Acaso enlouquecemos? Talvez tenhamos uma luz no final do túnel. Talvez com a Educação Infantil esteja acontecendo diferente. Talvez... talvez... talvez...
Só que não.

3. Educação Infantil: deixemos as crianças em paz!

Em um mundo erguido nos fundamentos da guerra, torna-se quase impossível falarmos de paz e quando tentamos ficamos confusos. Explico: muitos compreendem a paz como ócio máximo e, portanto, dispensável para a produção necessária à manutenção do que já não suportamos mais. Diante disso, corre o risco de muitos interpretarem a frase “Deixemos as crianças em paz!” como um apelo para a indiferença que conduziria às crianças a fazerem apenas “o que lhes der na telha” ou simplesmente não fazerem nada. Tal interpretação é justificável, pois fomos infelizmente formados para estarmos em guerra uns com os outros e, portanto, competindo, julgando, acusando, violando dentre outras qualidades nada afáveis. Mas não é a respeito desse mundo que tal frase se dirige.
Diante da pandemia, não teremos outro caminho se não esse: o de deixarmos as crianças em paz. E o que significa isso na prática, sabendo que partimos da posição de mundo que decidimos assumir, isto é, escola? Significa que teremos de deixar desmoronar todas as nossas formas de controle, seja em relação aos professores, aos pais e estudantes, para de fato entrarmos em diálogo com os seres humanos que, assim como nós, estão diante da eminência da morte. Significa honrar, quando falamos de Educação Infantil, o direito da criança à brincadeira e à interação principalmente consigo mesma e sua família. Significa aceitar de uma vez por todas que escola não é lugar de socialização, mas de promoção de encontros verdadeiros e que, portanto, não diz respeito efetivamente a paredes. Significa, por outro lado, reconhecer que não dá para simplesmente fazer uso de forma indiscriminada da tecnologia para institucionalizar a família, já tão tomada por suas próprias demandas. Significa, enquanto profissionais da Educação Infantil, assumir de uma vez por todas a brincadeira como o centro da relação com as crianças. Significa sermos capaz de romper com as telas tal qual fazemos quando nos trancamos nos quadrados de nossas salas de aula, também longe das ruas e do céu. Significa acolhermos o fato de que rotina é antes de tudo ritmo, coletivo e individual, a pulsar dentro do coração dos diferentes contextos. Significa sermos poeticamente ridículos e nos abrirmos para chorarmos juntos pelo fato de não podermos nos tocar. Significa termos a coragem de assumir nosso lugar de escola para então dizer às famílias o que lhes cabe. Significa nos permitirmos de uma vez por todas sermos e estarmos com as infâncias, das crianças e as nossas, únicas capazes de recriar de fato a vida... a nossa vida.
Fico pensando, diante de algumas falas, se a pandemia realmente não está sendo a oportunidade para que as famílias restituam seu lugar de família. Muitos dos pedidos de ajuda sinalizam uma dificuldade, não somente em função da “ausência” da escola nesse momento, mas principalmente com o fato de que as famílias já não se sabem mais famílias. A rotina, confundida com atividades e distrações para que a criança não atrapalhe o que o adulto precisa de fato realizar, deflagra a dificuldade já instaurada em algumas famílias muito antes da pandemia. Se a escola não se preocupou com isso antes, não será agora que dará jeito. Daí que é tão necessária a mudança de nossa conduta em relação a elas. Mães não são professoras, isto é, não possuem conhecimentos práticos e técnicos para lidar com as crianças. Sem contar que, de fato, ocupam e realizam um outro lugar, o de mães, já bastante cobrado socialmente. A escola não pode realmente acreditar que suas orientações e sugestões as colocarão nesse lugar, assim como não pode fazer com que acreditem nisso por um único motivo: isso é uma mentira. Sem contar que é jogar no lixo grandes conquistas dentro da área, frutos de muitas lutas e embates. Mães são mães. E isso é o maravilhoso que lhes cabe. A nós, professores, fica o desafio de finalmente nos encontrarmos com elas, olharmos seus olhos, ouvirmos suas histórias e podermos falar... sobre nós, professores, e nossas histórias, sobre o porque de nossas escolhas e sonhos e a partir daí fortalecermos os laços agora mais conscientes talvez de que a distância estava no antes... bem antes de toda essa loucura.


Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2011.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.