domingo, 18 de abril de 2021

Ressureição

    O desafio do mundo é o de crescer verdadeiramente, evoluindo de modo que cada ser se reconheça nos olhos uns dos outros. Nesse reconhecimento, novos pilares são erguidos pois já não é mais o Reino da Indiferença que se erguerá, mas o Reino do Amor.

    Muitos  pensam que o contrário do amor é o ódio. Mas, se pensarmos bem, ainda que nos pareça negativo e paradoxal, o ódio é ainda o que nos resta da capacidade de sentirmos algo por alguém. Algo que nos movimenta e aquece e pode, com o tempo, com doses homeopáticas e pacientes de acolhimento ser transmutado. Diferente do que ocorre com a indiferença. No ódio, mesmo com o olhar tomado pelo egoísmo de querermos o mundo tal qual nossa imperiosa vontade, ainda sim o vemos, sentimos, nos incomodamos com ele. Muitas vezes sentimos ódio justamente por perceber a ausência de amor seja em situações ou pessoas. O ódio é em geral ódio quando passamos a acreditar que não somos mais queridos, amados, desejados pelo todo que nos cerca ou quando percebemos que aquilo que até então amávamos nos passa a causar ojeriza. Nesse sentido, é muito verdadeiro o ditado que diz "ódio e amor andam sempre juntos". É fácil detectarmos os lugares ausentes de amor. Lá encontraremos um ódio feroz desejoso por ser transmutado.

    A indiferença é mais sutil. Sínica, ela se disfarça em ambos e nos engana a todos. As promessas insupríveis são seu maior regalo. Em geral, nossos corações percebem seu perigo, mas ela nos soa tão afável e inocente que acabamos por acreditar mais nela do que em nosso interior vermelho. Foi a indiferença quem ergueu o mundo no qual não suportamos mais viver. Ela é a capacidade absolutamente engenhosa de nosso ser mais inferior de nos cegar e aprisionar, convencendo-nos de que esse é o melhor caminho. É pela indiferença que confundimos: amor com clichê; caridade com esmola egóica; carinho com sexo; paixão com prisão; vida com conceitos; respiração com função sistêmica; deus com certezas; natureza com perigo; ser humano com dúvidas. E a lista não para por aí. Poderíamos passar a vida inteira aqui listando vários outros equívocos e ela só aumentaria.

    Uma das ações mais eficazes da indiferença é nos convencer, seja com embasamento teórico ou com fake news, de que a ignorância é o exercício do bem maior à medida que realiza o melhor sendo o pior possível. Assim são feitas incríveis descobertas, invenções e curas de todas as espécies que curiosamente dependem da vida de alguém para serem realizadas. Interessante observar como toda a ação tem uma justificativa infalível. Querem ver? O que nos diz um religioso que, mesmo passando fome e indignidade, dá a sua igreja o pouco que tem? Certamente ele dirá que está fazendo para deus sem perceber que são homens os cobradores de impostos. Do mesmo modo, qual é o sentido de em pleno século XXI ainda fazermos uso de vidas para "salvar" ou "manter" a nossa própria vida? 1, 2, 3... E vários de vocês terão milhares de justificativas plausíveis, bem estruturadas e dignas de serem ouvidas embora sejam, em sua maioria, humanamente equivocadas. E o equívoco está no fato de que independentemente do que se ache, pense ou diga uma vida não maior ou menor do que a outra. Uma vida, seja lá do que seja, não está a serviço de outra. É preciso que desapeguemos de uma vez por todas da escravidão.

    Escravidão é todo o desejo que nos move e nos condiciona a olhar a vida sempre dentro do mesmo formato. Daí que, a partir de sua lógica, rasa e medíocre, nada existe de fato. A vida, ela mesma, não faz sentido, por isso pode ser simplesmente ignorada. Aliás, o principal combustível da escravidão é a ignorância, seja ela letrada ou não. É assim que somos capazes de propagar, por exemplo, a ideia de que o outro - seja ele humano ou não - está subjugado apenas a nossa vontade. Vontade essa que passa longe da divina querência do inteiro. Nos terrenos da escravidão, não há inteireza, apenas a heresia da separatividade, da hierarquia e, porque não dizer, das salas de aula. A máxima é "não se olhem, não se toquem, não se ouçam!". Desse ensurdecimento paulatino e metódico nasce a violência e o abandono, filhos da ignorância, que propagam o julgamento e a condenação como os grandes pilares do mundo humano.

    Assim temos a trindade da escravidão: julgar - condenar - abandonar. É preciso que se diga, no entanto, que todo e qualquer ser dito humano só pode escravizar outro porque, na verdade, já é um escravo de sua própria inexistência. Somente um escravo em potencial, ou seja, alguém atolado na mais profunda ignorância de sua própria existência, pode realmente acreditar ser capaz de escravizar outro. Desse modo, é simples porém arduamente trabalhosa a caminhada para que, à medida que nos tornamos mais conscientes de nossa própria escravidão, a libertemo-la de nós. Pois, liberdade não é algo dado. É nascido de nós num parto originariamente natural e visceral.

    Mas não fiquemos revoltosos ou sabidos ou incomodados com que voz digo aqui. Essas são apenas evidências de uma jovem alma velha diante de um mundo que resiste em morrer. Esse mundo mofado, que já não suportamos mais, é paradoxalmente a única coisa que sabemos de nós e que talvez por isso sentimos tanta dificuldade de deixarmos ir. E por que? Porque dói pensar que parte de nós precisa se deixar morrer com ele. Mas não estou falando de pandemia ou apocalipse. Falo de uma mudança interna na alma da humanidade, que já pode ser vista a olhos nus nos olhos dos meninos e das meninas chegados à Terra.

    Olho diariamente nos olhos das crianças a pulsação de novos mundos possíveis, onde o amor é a alegria luminosa do corpo, às vezes em meio à condições que nos parecem impossíveis. Um corpo sem medo dos riscos, dos sonhos. Um corpo tão disponível para a vida que consegue fazer brotar arco-íris por onde passa pelo simples prazer de congregar sol e chuva, sem se preocupar em dizer qual deles é o mais bonito. Um mundo tão cheio de beleza, capaz de fazer de nós adultos, carregados de profundas lágrimas no peito, fazedores de rios, onde podem simplesmente brincar. 

    Nesse novo mundo possível não há discurso, pois é preciso ser o que se faz, o que se pensa, o que se sente e o que se diz. Só há poesia e música e dança e pintura por toda a parte. Lá, cada ser humano ocupa as praças, as ruas, os hospitais, os bancos, os supermercados, os cemitérios, anunciando: "Vocês estão livres. Obrigada por tudo o que nos ensinaram. Já não precisamos mais de vocês! Já não somos mais suas lógicas e razões! Nascemos! Somos outros! E a vida nos sonha para existir!". É assim que lá, nesse mundo menino, cada coração humano é nossa casa e dentro dela o abrigo é tão quentinho que mãe se torna palavra redundante. Lá, somos todos mães e filhos e pais. Nosso alimento é plantado, colhido e compartilhado por todas as almas, que agora compreendem que a vida não lhes pertence e que, por isso, é necessário com ela comungar.

    Do céu... no escuro, quando brincamos de pássaros dentro das nuvens... vemos lá embaixo o que realmente sentimos que viemos para ser... pontos de luz, em dourado e prateado, espalhados por todo o corpo da Terra. Lá de cima, as estrelas, que tudo escutam, choram de emoção ao verem seus retratos tão bonitos dispostos na memória de algum desses pontos... Ressureição!

    Quem tem olhos de entoar, que voe!